segunda-feira, 20 de junho de 2011

Entrevista com o Miguel nos Cadernos de Yoga

27 de Abril de 2011

Entrevista com o Miguel nos Cadernos de Yoga


Para quem não tem acesso à publicação aqui fica a entrevista com o Miguel que saiu na última edição dos Cadernos de Yoga:

Você já estudou Āyurveda, Tantra e atualmente é estudante de Vedānta, o que te levou ao Yoga e como se deu a sua trajetória dentro desse estilo de vida?


O Yoga aparece na minha vida fruto do acaso, embora hoje deva dizer, fruto do karma. Eu não era uma pessoa em busca do Yoga ou da espiritualidade. Certamente como tantos outros tinha os meus questionamentos e perguntava-me sobre o sentido da vida que as pessoas levavam. No entanto, isso nunca despoletou em mim até então qualquer busca. Na altura, por causa da Maria e de início sem grande vontade, comecei a praticar Yoga. Como muitos achei muito estranho de início, mas depois comecei a querer saber mais e estudar e percebi que ali podia encontrar as respostas para as minhas inquietações. Comecei a praticar e estudar diariamente 3 meses depois de começar e assim segue desde então. Já Lá vão 10 anos.
Comecei por praticar uma forma de Haṭha Yoga com a qual hoje não me identifico, mas que foi a minha porta de entrada e por isso tenho uma gratidão pelo meu primeiro professor. A verdade é que a determinada altura não tinha respostas para o que queria, e percebi que o foco daquele método não era o Yoga propriamente dito. Foi a minha percepção. Procurei então outras abordagens, alguém que me ensinasse mesmo Yoga. A partir dali comecei a crescer. Conheci a Claúdia Villadelprat com quem aprendo Iyengar há seis anos, depois o Dada Dhyanananda com quem por um período de tempo tive uma relação muito próxima. Ao Dada devo ter percebido o que era Bhakti e ter aprofundado a prática de meditação. Mais tarde fui para o Brasil aprender com o Pedro Kupfer. O Pedro é meu Professor, é como um irmão. Ele foi o ponto de viragem no meu caminho, clareou a minha visão do Yoga. Continuo a aprender com ele até hoje. É uma doce e generosa alma que passeia por este mundo. Pelo Pedro cheguei ao Swami Dayānanda, que é o meu Mestre, e ao Vedānta.
Eu cheguei a um momento em que, fruto de circunstâncias pessoais, percebi que existia uma limitação inerente à técnica. Aquilo que a técnica faz por nós, fez até ao momento presente, mas se no momento presente somos confrontados com alguma dificuldade não é a técnica que vai resolver o problema. Posso até parar, fazer prāṇāyāma ou meditar, mas quando abrir os olhos, o mundo continua lá fora à minha espera. Percebi então que eu precisava de olhar-me e ao mundo de forma diferente e o Vedānta foi a solução para mim.
É claro para mim, hoje, que ensinamento e prática não estavam separados na Índia, mas quando os ocidentais começaram a ir para lá não tinham acesso ao sânscrito, nem às línguas locais e portanto conseguiram trazer o mais palpável, a técnica. A verdade, no entanto, é que a técnica sem o ensinamento tem um potencial limitado.
Não há palavras que possam exprimir a gratidão que sinto por aprender ano após ano com o Swami Dayānanda e com o Swami Paramarthanda. Não há palavras para aquele que lança luz sobre a escuridão da nossa ignorância e nos liberta do sofrimento.
O Āyurveda surge no meu percurso pela mesma necessidade de encontrar uma base que me permitisse ensinar Yoga de um para um. A adequação do Yoga ao indivíduo tem tradicionalmente o suporte do Āyurveda e isso é claro nos textos de Haṭha Yoga. Por ter conhecido o Atreya Smith conheci o David Frawley e comecei a aprender com ele. Também por causa do Atreya conheci a Ganga Decoux (antes conhecida como Mira). A Ganga foi discípula e mulher do Papaji. Visito-a todos os anos, mais do que uma vez. Os satsangas da Ganga são uma forma de mananam e nididhyāsana sem preço. Considero-a uma luz no meu caminho também.
Com o tempo fui conhecendo outras pessoas com quem aprendi e aprendo e que se tornaram muito significativas; A Gloria Arieira que, como o Pedro Kupfer, dispensa apresentações no Brasil, é aquela clareza. É muito bom tê-la conosco.
Nos últimos anos eu e a Ana começamos a descobrir o Aṣṭāṅga Vinyāsa com o Tomás Zorzo que foi um dos estudantes mais antigos do Patabhi Jois. O Tomás tem uma simplicidade, espontaneidade e compaixão tocantes a ensinar e com ele entramos noutro universo do legado de Kṛṣṇamacharya. Por fim, uma palavra para o David Swenson com quem fizemos formação recentemente e nos abriu mais uma janela de possibilidade dentro desta tradição tão vasta e interessante que é a do Haṭha Yoga

Você também é advogado, como divide o tempo como praticante, professor e estudioso do Yoga com o ofício do direito?

Essa é uma boa pergunta! Acho que puṇyam (mérito), alguma disciplina e foco
O meu Pai já faleceu, mas também era advogado como a minha mãe também é. As leis não são novidade na família. Quando comecei a exercer e durante algum tempo tive um conflito, porque via o direito como um obstáculo à minha dedicação ao Yoga. Depois percebi que a resistência nascia da dificuldade em lidar com algumas situações com que a advocacia me confrontava. Comecei então a olhar para a advocacia como Yoga e como uma oportunidade para crescer. Hoje estou em paz com isso.
Aliás a advocacia dá-me uma coisa óptima: sustento. Isso faz com que eu nunca olhe para o que faço no Yoga como o meu ganha pão. Isso é uma coisa preciosa para mim. Ensino o que me parece importante, sem modismos, sem pressão. Eu ensino aquilo em que acredito e não aquilo que vende ou as pessoas querem.
Vejo que, pelo menos aqui em Portugal, algumas pessoas se entusiasmam com o Yoga, são praticantes dedicados e muito cedo abandonam tudo para ensinar Yoga, com a ideia de só se dedicarem a isto. O problema está em que depois passam o dia a dar aulas, perdem a prática pessoal, perdem a possibilidade de continuar a praticar com outros professores. Nem sempre o Yoga é rentável e no meio da sobrevivência perdem a capacidade financeira para poderem fazer cursos, formações e viajar para aprender. A formação no Yoga é contínua e parece-me importante levar uma vida que não o comprometa.
Sou afortunado porque trabalho no escritório que é dos meus pais e tenho muita liberdade. Liberdade para não cumprir horários, para não ter de ir ao escritório todos os dias, para passar meses fora a estudar. Devo muito à minha mãe por isso. Ela sempre me ajudou e me apoiou.

O que o levou a vir estudar Yoga no Brasil?

Eu fui para o Brasil numa altura em que sentia que precisava de fazer uma formação de novo. Nessa altura eu já conhecia o Yoga.pro há aproximadamente dois anos. Um amigo tinha-me falado no site. Ainda era aquela versão branca. Achei incrível, porque naquele site, de graça, havia mais informação, estudo e ensinamento do que em muitos livros que eu tinha encontrado e mesmo cursos de supostos mestres.
De certa forma, foi uma maluquice, ir daqui para o Brasil para aprender com uma pessoa com quem nunca tinha praticado, que não conhecia, não conhecia sequer quem tivesse praticado com ele! Lembro-me de estar no aeroporto à espera do embarque e pensar para mim. “Miguel, és completamente alucinado. Vais atravessar o oceano, só porque meteste na cabeça que aquele fulano tem alguma coisa para te ensinar.” Foi uma das melhores alucinações que tive! Tive o apoio de quem estava ao meu lado e lá fui eu.
Nessa altura não havia nenhuma formação naquele formato intensivo aqui em Portugal. E eu, de facto, queria sentar e conviver com a pessoa que me ensinava. Para mim sempre foi importante estabelecer uma relação próxima com quem aprendi. Não consigo aprender de outra forma. O Pedro ensinou-me e acolheu-me. Temos em comum uma série de coisas, não só a paixão pelo Yoga, mas acho que tivemos um crescimento semelhante de alguma forma e isso moldou algumas características comuns. Não sei se ele se revê nisto, mas é a minha percepção.
Lembro sempre com muito carinho essa primeira viagem.

Qual a diferença que você observa entre o Yoga no Brasil, em Portugal e na Índia?

A última vez que estive no Brasil foi em 2006, portanto não sei se a minha opinião terá o suporte suficiente. Nos últimos anos, vou acompanhando sobretudo pelos amigos que tenho aí.
Claramente o Yoga cresceu muito mais cedo no Brasil do que em Portugal. Isso parece-me inequívoco. Também é claro, que o Yoga se tornou muito mais rapidamente uma moda no Brasil do que cá. Quando fui para o Brasil em 2005 toda a gente dizia que praticava este Yoga, aquele Yoga. Aqui em Portugal, não havia tanto isso. Havia uma ideia mais uniforme do Yoga. As distinção era mais feita pelos professores do que por métodos. Hoje isso também já começou a mudar aqui. Tem o seu lado bom e menos bom. Sinceramente não acredito em bons e maus métodos de yoga, mas mais em bons e maus professores de Yoga. Claro que quando digo isto, logo as pessoas pensam nas coisas mais abstrusas que têm o nome de Yoga e perguntam-se se eu lhes dou o meu aval. Simplesmente não as considero Yoga.
Uma diferença clara que me parece existir entre o Yoga no Brasil e em Portugal é que cá o Yoga é mais democrático. Quero com isto dizer que está mais acessível às pessoas. Se pensarmos que o Euro é muito mais forte que o Real, (aprox. 3 vezes mais), que o nível de vida médio em Portugal é superior ao Brasil e que é mais barato praticar Yoga em Portugal do que no Brasil dá que pensar, não? Aqui, qualquer pessoa consegue praticar Yoga. Parece-me que aí não é bem assim. Pelo menos é a percepção que tenho do que vou vendo. Já vi escolas, cursos e retiros de Yoga com preços que seriam absurdos em Portugal.
Não sei se isso nasce das assimetrias sociais graves no Brasil. Uma coisa que me chocou quando fui para aí era as pessoas serem catalogadas por classes sociais e isso ser do vocabulário comum. Se é isto que está na origem de um Yoga mais elitista talvez seja de repensar. De qualquer forma, parece-me que muitos professores aí têm muita consciência desse problema e talvez daí nasçam tantas iniciativas de levar o Yoga aos menos favorecidos. Vejo muito isso no Brasil e parece-me louvável.
Definir o Yoga na Índia é uma empreitada! Ali nasceu o Yoga, há o tradicional, há o bom, há o novo e ainda assim bom e depois ali como noutros lados existem deturpações. Talvez lá mais que noutros lugares existam mais pessoas dispostas a aproveitar a inocência daqueles que vão para lá à procura do Guru. Não vale a pena ir para a Índia passear à espera de tropeçar com quem nos vá ensinar. O mais provável é sermos enganados e voltarmos desiludidos. A Índia não é o país idílico que muitos pintam. É preciso saber para o que se vai. Se isso acontecer a experiência pode ser muito enriquecedora e gratificante. Eu tive essa sorte e por isso volto todos os anos.
Se formos olhar para o Hatha Yoga na Índia, e se ele hoje em dia cresce, é porque os jovens querem tornar-se ocidentais e como nós aqui praticamos, eles também querem praticar. Se formos olhar para o ensinamento, o panorama já não é tão animador. Uma vez conversava como Swami Paramarthanda que vive em Chennai e comentava que a maior parte das pessoas que aprendiam com ele tinham mais idade e que aqui no ocidente era diferente. Ele concordou, riu e disse que ainda ia chegar o dia em que para se aprender Vedanta seria preciso ir ao Ocidente! Acho que ainda estamos longe desse dia e há muito o que aprender lá felizmente.

No Brasil, a Aliança do Yoga foi criada em maio de 2002, contrapondo-se à ameaça do Yoga ficar subordinado aos Conselhos Educação Física. A Aliança defendeu e defende a auto-regulamentação do Yoga. Você participou da criação da Aliança do Yoga em Portugal, que foi criada inspirada no modelo da Aliança do Brasil. O que levou à necessidade dessa criação?

Aqui como aí, o que levou à criação da Aliança foi a necessidade de proteger o Yoga de grupos e instituições que pensam pouco em Yoga e mais em poder, controle e lucro. É o que é, e é uma infelicidade. A tentação de deixar o Yoga cair na Tutela do desporto também existiu, mas felizmente por agora está ultrapassado.
A Aliança nasce neste contexto. Ainda estamos a dar os primeiros passos, mas muito de bom pode nascer desta iniciativa.

Vemos que o Yoga cresceu de maneira muito rápida em todo o ocidente, qual você acha que é o futuro do Yoga aí em Portugal, e em geral na Europa? Acredita que continuará esse processo de crescimento?

Acredito que o Yoga vai continuar a crescer. Se na melhor direcção ou não, não sei… Acredito que o Yoga vá chegar cada vez a mais gente. Que o Yoga pop se desenvolva cada vez mais e por aí, cada vez surjam mais e mais marcas de Yoga. Nesse crescimento, muitos vão chegar a qualquer coisa que lembre o Yoga, e isso certamente despertará alguns para saberem mais.
O verdadeiro Yoga não é para todos. Nem todos querem mokṣa. Se formos ver, a maior parte dos praticantes quer é um bom saṃsāra. Mas o Yoga está aí para mokṣa! Talvez do crescimento pop, alguns cheguem ao Yoga tradicional e também por aí o Yoga cresça. Vejo o Yoga como uma mãe generosa que dá a cada um aquilo que cada um quer. Respeito isso. Procuremos também respeitar esta mãe, sem a enxovalhar.


Na sua opinião, qual é a importância de manter o estudo dos textos do Yoga e estar em constante contato com a Tradição?

Para mim, isso é o fulcral. O Yoga nasce na tradição védica, nasce na culltura védica. A vida de Yoga , a prática de Yoga têm um propósito claro que é o de dar ao praticante a maturidade suficiente para poder entender e assimilar o ensinamento. E o que o ensinamento nos diz é que nós somos a plenitude que buscamos fora. A liberdade da sensação de que falta alguma coisa para ser finalmente completo e feliz é mokṣa - é o que o ensinamento revela. Praticar sem se expor ao ensinamento é como manter o carro sempre afinado e limpo, mas nunca o tirar da garagem. Há que dar uso ao corpo mente lapidados pela vida de Yoga. E neste contexto, esse uso é a exposição ao ensinamento para reconhecermos a nossa verdadeira Natureza. Todo o ser humano quer ser feliz e completo. Se fosse conseguir por si mesmo, sem ajuda, provavelmente teríamos mais sábios a passear no mundo.
O ensinamento muda a visão da pessoa, torna o Yoga vivo. Suponho que isto seja uma verdade dentro de qualquer tradição. Honremos o que seguimos.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Entrevista com Gloria Arieira

Entrevista com Gloria Arieira


Por Vicente Morisson, para o blog Vedanta, Yoga e o Mar
Gloria Arieira é a diretora-presidente do Vidya Mandir. Em janeiro de 1974 foi para a Índia estudar com Swami Dayananda, que se tornou seu mestre. Com ele estudou até julho de 1978, retornando então ao Brasil. Além de permanecer no Āśhram Sandeepani Sadhanalaya, um local de estudo e vivência com o mestre, em Mumbai, também estudou em outros āśhrams em Uttarkashi e Rishikesh, norte da Índia. Viajou também para lugares nas várias regiões da Índia, para participar de cursos, palestras e visitas a lugares sagrados, como os templos de Tamil Nadu e Kerala, conhecendo melhor a tradição cultural e religiosa dos vedas.

Desde seu retorno, vem ensinando vedānta e sânscrito no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil e também no Porto, em Portugal. Dedica-se também ao trabalho de tradução para o português dos textos em sânscrito, como a Bhagavadgītā, Upanishads e vários outros. É responsável pela publicação em português dos livros de Swami Dayananda, editados pela Vidyamandir Editorial, e de dois outros livros: Orações Milenares e Pūja – a realização de um ritual védico.

Vicente Morisson: Quando você se interessou pelo estudo do Vedānta e por quê?
Gloria Arieira: Eu buscava respostas para questões sobre a vida, como alcançar a paz definitiva e sobre a existência de Deus, e principalmente sobre o objetivo último de se viver a vida. Tinha uns 18 anos e não encontrei respostas claras em filósofos nem em religiões. Comecei a praticar Yoga e meditação, antes me tornei vegetariana e questionei muito sobre a importância da verdade e da sinceridade. Um dia, conheci Vedānta através de um Swami que veio ao Brasil por dois dias; foi o Swami Chinmayanandaji. Foi a minha sorte grande na vida! O que ele falou fez tanto sentido que resolvi estudar mais com ele, na Índia.

VM: Como foi estudar na Índia nos anos 70? Você sofreu algum tipo de dificuldade por ser jovem, mulher e ocidental?
GA: Fui para Índia em janeiro de 1974. Ainda no Brasil, em minha busca, conheci uma pessoa que tinha as mesmas questões que eu. Nos casamos, conhecemos Vedānta juntos e fomos para Índia. Acho que foi mais fácil para mim por ter ido casada. Apesar de que ficamos separados no āśram, vivendo a vida de estudantes, brahmacaris e brahmacarinis.
Vida de āśram e de estudo intensivo de Vedānta não é fácil, principalmente na Índia, onde a cultura é tão diferente da nossa. Mas eu queria muito estudar e me adaptar, por isso não foi difícil.
VM: Você pensou em viver na Índia de forma definitiva?
GA: Eu pensava em viver na Índia depois que o curso acabasse, pois eu tinha me adaptado plenamente e gostava da cultura. Mesmo durante o curso dei aulas para algumas pessoas e até para crianças indianas sobre a cultura e seu significado. Mas bem no final do curso eu pensei que como poderia ter nascido na Índia e não nasci, teria uma razão maior para ter nascido no Brasil. Eu deveria voltar e ensinar Vedānta em português às pessoas que não poderiam fazer o que eu fiz. Então voltei. Cheguei de volta ao Brasil no final de setembro de 1978.

VM: O que mais significativamente mudou para você ao compreender o significado do conhecimento do Vedānta?
GA: O principal foi o relaxamente interno ao encontrar respostas para todas as minhas questões sobre mim mesma, sobre a vida, sobre Deus.

VM: Qual é importância de um professor no aprendizado desse conhecimento?
GA: Um professor ou professora é fundamental. Primeiro porque existe mais do que está escrito nos textos, que são as explicações da tradição oral, que só uma pessoa que estudou com um professor que estudou com outro é que terá acesso.
Além disso, o autodidata tem grandes chances de aumentar e fortalecer seu ahamkāra; fortalecendo o ego, o eu falso, é difícil reconhecer o verdadeiro.
VM: Você tem alguma prática pessoal? Caso sim, como ela é?
GA:
Estudo, medito, faço japa e cantos védicos diariamente. Além de dividir o conhecimento de Vedānta com outras pessoas, ensinando.
VM: Qual é o objetivo da meditação? Que dica você daria para quem está querendo começar a meditar?
GA:
A forma mais efetiva de meditação é japa, a repetição de um mesmo mantra, com todos os detalhes que a técnica inclui.
A meditação tem como objetivo último a descoberta da paz que é nossa natureza. Por isso, desde o início, a meditação tem que ser algo agradável. Se não for, algo está sendo feito erradamente.

VM: Qual é a relação que podemos encontrar entre o Vedānta e o Yoga?
GA: Yoga é, desde sempre, nos Vedas, um estilo de vida que inclui muitas práticas e atitudes para preparar a pessoa para o autoconhecimento, que é Vedānta.
VM: Já que o nosso blog explora também o universo do mar, e por você morar no Rio de Janeiro, ele tem alguma importância para você?
GA: Eu moro bem perto do mar, ele sempre esteve presente em minha vida. Foi o meu primeiro lugar de meditação. O mar é um deva, uma expressão de Īśvara, é uma fonte de inspiração por sua força, grandeza e profundidade. Ele tem vida e se expressa através de seu constante movimento.

VM: Como é a sua relação com a religião?
GA: O estudo de Vedānta não exige que a pessoa seja religiosa. Eu me tornei hindu por opção, porque as práticas da religião hindu fizeram sentido para mim.

VM: Você já enfrentou alguma situação de risco de vida? Como encara a morte?
GA: Já encarei situação de risco de vida. Encaro a morte como o fim de uma vida; e a vida somente acaba quando o que se veio fazer aqui já foi feito. É então um momento inevitável e natural, ainda que de grande expectativa, pois nada sabemos a respeito diretamente. Culturalmente pensamos muito na vida e em como aumentar sua duração, devemos pensar e entender mais sobre a morte que é natural e inevitável.

VM: Quem são as suas grandes referências no estudo do Vedānta?
GA: Minhas referências são meus mestres diretos, Swami Dayananda e Swami Chinmayananda e o grande mestre de todos nós que estudamos Advaita Vedānta – Śri Shankara. Também tenho meus colegas de estudo do tempo do āśram como referência; encontro com alguns deles ainda. O mestre do Swami Chimayananda, chamado Swami Tapovan, foi também uma inspiração durante meus estudos.
VM: Qual é a sua preferência alimentar? Você faz algum tipo de acompanhamento nutricional?
GA: Sou vegetariana; incluo leite e derivados em minha alimentação. Exames de sangue regulares dizem que a alimentação vegetariana tem dado certo para mim.

VM: De uma maneira geral, como você vê a relação entre o homem e o meio em que ele vive atualmente?
GA: O ser humano depende da natureza para sua sobrevivência. A natureza reage conforme a atuação do ser humano. Há uma dependência mútua entre os dois. Como seres humanos, devemos reconhecer tudo o que recebemos da natureza, ser gratos a ela e expressar essa gratidão através de ato de cuidado para com ela. Cuidar dela é cuidar de nós mesmos e de nossa paz e bem-estar. É necessário uma maturidade para entender isso e agir de acordo com esse entendimento. Definitivamente a natureza não foi criada para nosso consumo!

VM: Qual o lugar mais especial que você já visitou e por quê?
GA: Já visitei alguns lugares significativos e especiais. O mais especial foi o templo de Venkateshvara em Tirupati, perto de Chennai, India. Desejei e tentei visitar esse templo inúmeras vezes, desde 1975. Só consegui ir em setembro de 2007. Foram muitos anos de desejo e expectativa que tornaram o momento ainda mais especial.

VM: Que dica você daria para aquelas pessoas que compreendem o conteúdo do ensinamento do Vedānta, mas têm dificuldade de colocá-lo em prática no momento oportuno? Como fazemos para trazer a acomodação?
GA: O estudo de Vedānta é sobre o eu absoluto que é livre de limitação, que é pleno. Quando descobrimos esse eu, há muitas vezes a expectativa ou fantasia de ser perfeito como pessoa. Não conseguimos acomodar a nós mesmos com nossas limitações, imperfeições e dificuldades, então não acomodamos os outros nem as situações não desejadas que surgem. Quando acomodamos a pessoa relativa em nós, lidamos melhor com o mundo e com o outro, em consequência.
VM: Existe algum desafio no seu trabalho hoje?
GA: Cada aula é para mim um desafio, em poder transmitir, com clareza, em português, para um grupo de pessoas atentas sentadas à minha frente, o que está dito nos textos em sânscrito e explicado pela tradição oral.

VM: O que você considera essencial para se viver bem?
GA: Ser uma pessoa coerente, sincera e discriminativa.

VM: Que dica você daria para quem está querendo se aprofundar no estudo do Vedānta?
GA: Procure uma pessoa que possa lhe ensinar, sente e escute o ensinamento, não negligencie a sua vida diária e o que deve ser feito por você. Tente entender a natureza de Īśvara e busque proteção para lidar com humildade com seus sucessos e conquistas.

Vicente Morisson é professor de Yoga (São Paulo), estudante de Vedānta e amante do mar. Tem Swami Dayananda, Gloria Arieira e Pedro Kupfer como seus inspiradores na prática e no estudo.
Maiores informações sobre Gloria Arieira: www.vidyamandir.org.br

terça-feira, 7 de junho de 2011

Frase

“Se o Yoga fosse para parar a mente eu já teria abandonado a prática e o estudo há muito tempo. A mente não deve ser suprimida, deve ser entendida, seus processos e a sua realidade revelados”

(Tales Nunes)



O Yoga nos shastras

por Tales Nunes
Definir o Yoga é definir a busca humana
Dentro dos textos da tradição védica, a palavra “Yoga” é usada para definir o caminho que se trilha, o caminho do autoconhecimento, e ao mesmo tempo o objetivo final dessa busca. Analisaremos neste texto o significado do Yoga e a sua relação com Vedanta desde as Upanishads, passando pela Bhagavad Gita, até o Yoga Sutra de Patañjali.
O ser humano é uma preciosidade. Dentro do caminho do Yoga, precisamos reconhecer primeiro o que é esse ser humano e depois a preciosidade que ele é. Fisiologicamente o ser humano não é diferente dos animais. As proteínas que compõem o nosso corpo não são tão diferentes das proteínas que compõem um alface. Drogas que funcionam no sistema nervoso de um rato, funcionam igualmente no nosso. A preciosidade humana é o fato de ser autoconsciente, auto-evidente. Essa autoconsciência nos dá a liberdade de escolher. A todo momento estamos escolhendo. Podemos resumir toda a nossa vida a escolhas do que comer, do que ver, do que escutar, do que vestir. O ser humano, dentro daquilo que ele conhece, pode ser e desejar qualquer coisa. Isso é o que torna os seres humanos tão diferentes culturalmente uns dos outros.
O que há em comum no ser humano, seja ele de qualquer parte do mundo, dentro de qualquer cultura, é a busca pela felicidade. Todos nós buscamos a felicidade. Essa é uma fórmula essencial para a compreensão da conduta humana. As nossas ações são direcionadas a esse fim. Seja na busca por experiências com drogas, nos nossos relacionamentos amorosos, na aquisição de bens materiais, o pano de fundo dessas ações é a busca por felicidade.
Essa felicidade, porém, parece ser impossível de ser alcançada. Logo que conquistamos algo que nos deixa feliz, segue um receio de se perder o que foi conquistado, ou simplesmente a mente se entedia. Nessa busca, então, sentimo-nos frustrados, pois não nos contentamos com uma pequena alegria momentânea. O que queremos, de fato, é a felicidade plena, mas buscamos no lugar errado.
É aí que entra o Yoga (como tudo o que vai nos apoiar na compreensão do Conhecimento) e o Vedanta (como meio de conhecimento). Vedanta nos fala que nós já somos a plenitude que nós buscamos. Vedanta é o conhecimento contido na parte final dos Vedas (Upanishads) e que nos fala sobre esse Ser ilimitado que nós somos. Fala sobre essa busca fundamental, que é a busca por moksha, como alcançar esse fim, e qual o ganho que advém disso.
A nossa real natureza é consciência e plenitude. E essa é a razão de não nos contentarmos com menos do que isso. Não nos contentamos com menos do que somos, queremos esta mesma grandeza, só que de fato nunca a encontraremos em experiências. O que falta no ser humano é o reconhecimento de que já somos a plenitude e a felicidade que buscamos em situações e experiências. E para isso é necessário uma mudança de olhar, de foco. A solução é um conhecimento. O conhecimento do eu ilimitado que sou, além do complexo corpo, mente.
Fundamentalmente, realização pessoal, liberdade, ou moksha, o objetivo da vida humana de acordo com Vedanta, é esse reconhecimento. Porém, podemos dizer que, relativamente, já é um grande ganho descobrir que eu sou a fonte da minha felicidade – não no sentido egoísta, mas no sentido mais profundo – e que os objetos ao meu redor não têm qualidade de felicidade, mas apenas fazem com que eu relaxe e abra mão, momentaneamente, das minhas expectativas, das projeções para o futuro, da mania de me comparar com os outros e da minha sensação de limitação. Essa percepção já me torna mais atento dentro dos papéis sociais que eu cumpro, evitando com que eu queira sempre extrair a minha felicidade das relações e do mundo.
É importante reconhecermos que apesar de ser um processo compreensivo, moksha não se dá instantaneamente. Para a maior parte das pessoas é um processo. Apesar de fazer todo o sentido, não é simples reconhecer que somos a felicidade e a paz que buscamos, sobretudo se sequer temos uma paz relativa. É preciso descobrir uma paz relativa para compreender que sou a paz absoluta. Para isso, o Yoga é um apoio. Para muitos pode incluir o que nós conhecemos como Hatha Yoga: asana, pranayama, mudras, meditação, mas deve incluir também o que é apresentado nos sutras de Patañjali e na Bhagavad Gita: que é a importância do questionamento e do desapego, o reconhecimento do valor que os valores têm na vida, a atenção nas ações e uma postura compreensiva diante do resultado dessas ações. Ou seja, é toda uma vida de Yoga que é proposta nesses dois textos.
Nessa Vida de Yoga é necessário coragem, disciplina, auto-estudo, desapego, pois precisaremos lidar com apegos, condicionamentos, “traumas”. E talvez seja importante, nesse processo, procurar ajuda terapêutica, dependendo da intensidade das emoções e dos “nós” que são mexidos. Às vezes estamos tão imersos em nossas ilusões que não conseguimos ver as situações com clareza. E só de expressar essas situações para uma outra pessoa já nos ajuda a nos organizarmos, a nos reconstruirmos. Porém os textos de Yoga, em si, falam sobre nós mesmos e as reações da nossa mente e nos ajudam a nos enxergamos com mais clareza e compreensão. Ao estudarmos os sutras de Patañjali, por exemplo, temos um claro e objetivo mapa da psique humana, mais profundo e antigo do que qualquer tratado psicológico ocidental.
Em resumo, todo e qualquer tipo de apoio usado no caminho do autoconhecimento faz parte de uma Vida de Yoga que irá conduzir, junto com o estudo de Vedanta, à compreensão de quem realmente somos, e ao reconhecimento do ser humano, de nós mesmos, como uma preciosidade. Esse é o objetivo do estudo que está contido nosVedas.
Os Vedas
Os Vedas são quatro: Ṛg Veda, Yajur Veda, Sama Veda e Atharva Veda. Estão divididos em três seções: Karma Kanda, Upasana Kanda e Jñana Kanda. A primeira fala sobre as ações, a segunda sobre as meditações e a última sobre o Conhecimento.
As duas primeiras constituem a parte formal dos Vedas, que se chama Veda Purva, a parte final dos Vedas, e tem como objetivo a preparação da mente, a remoção dos obstáculos para que haja a compreensão da parte final dos Vedas. Nessa primeira parte dos Vedas existem meditações (upasanas) e ações rituais que têm como objetivosAntarkaranam shuddhi (purificações), liberação dos vasanas (obstáculos) que aprisionam a mente, para que o estudante tenha a clareza no estudo e adquira uma mente apreciativa. O objetivo das upasanas é que o estudante tenha uma mente pura, tranquila. Podemos dizer que embrionariamente Ayurveda, Astrologia Védica, Simbolismo Védico, Vastu Shastra estão embrionariamente contidos nessa primeira parte dos Vedas. Posteriormente, esses conhecimentos foram sendo elaborados a partir de textos específicos sobre cada tema.
A parte final dos Vedas, por sua vez, Vedanta, é o que chamamos de Upanishads. O estudo das Upanishads requer uma certa maturidade e preparação por parte do estudante. Primeiro, porque o ensinamento ali contido está numa linguagem simbólica e metafórica; segundo, porque vai-se direto, sem arrodeios, ao assunto mais sutil, a identidade entre o indivíduo e o todo. As próprias historinhas contidas nas Upanishadsnos mostram a preparação dos estudantes. Os discípulos que aparecem nessas histórias são altamente qualificados, ou seja, tem uma mente capacitada para sentar e escutar o ensinamento. Se não se possui essa mente, é preciso fazer ações e passar por um processo de preparação.
As Upanishads
Como dissemos, Upanishad é a parte final dos Vedas. O que se chama de Vedanta. Existem várias Upanishads em cada Veda. É dito que existem 108 Upanishads. Outros especulam que chegue a existir 1008. Dentro do estudo de Vedanta são dez asUpanishads mais estudadas: 1) Isha Upanishad (Yajur Veda); 2) Kena Upanishad (Sama Veda), 3) Katha Upanishad (Yajur Veda), 4) Prashna Upanishad (Atharva Veda), 5)Mundaka Upanishad (Atharva Veda), 6) Mandukya Upanishad (Atharva Veda), 7) Taittiriya Upanishad (Yajur Veda), 8 ) Aytareya Upanishad (Ṛg Veda), 9) Chandogya Upanishad(Sama Veda), 10) Brhadaranyaka Upanishad (Yajur Veda).
Essas dez são as mais importantes. O que as tornam mais importantes são os comentários dessas Upanishads feitas por SHaṅkaracharya e outros mestres. Estudando essas dez, pode-se estudar sozinho qualquer outra e compreender perfeitamente, pois a essência do ensinamento é o mesmo em qualquer Upanishad.
Tema das Upanishads
É nas Upanishads que está contido o conhecimento específico sobre o que é Brahman. Esse conhecimento é chamado de Brahmavidya. O tema das Upanishads é dizer: esse sujeito Atman, você mesmo, é Brahman, o Todo. Esse você mesmo, que se acha pequeno e insignificante e que constantemente busca a felicidade fora, é em si mesmo pleno e livre de limitação, é a base de toda a criação.
Para revelar esse fato ao buscador, as Upanishads não falam sobre uma Vida de Yoga com os detalhes que são apresentados nos Yoga Sutras e na Bhagavad Gita. Está implícito que todos já sabem o que é essa Vida de Yoga. E pela necessidade que os estudantes apresentam aos mestres, essa explicação não se faz necessária. Vejamos, então, brevemente, os ensinamentos, o contexto e como o Yoga aparece em duas importantes Upanishads.
O Yoga nas Upanishads
O Yoga na Katha Upanishad
A Upanishad começa, como todas as outras, com um mantra da paz, um shantipatah. O mantra de paz desta Upanishad é o que muitos professores de Yoga cantam no início de suas aulas, o sahana vavatu. Em seguida, a Upanishad traz uma historinha. A essência da história é o diálogo entre um jovem rapaz chamado Nachiketas e o deus da morte Yama. Em determinado ponto do enredo, três desejos são concedidos a Nachiketas pelo deus da morte, o terceiro que ele escolhe é saber o que acontece após a morte.
Relutante em revelar os segredos do pós-morte ao menino, Yama oferece a ele o que quisesse de bens materiais: saúde, beleza, mulheres, filhos, riqueza. Nachiketas não se rende a tais tentações e retruca que tudo o que lhe foi oferecido é perecível e de nada vai lhe servir depois da morte. O que ele realmente deseja é o conhecimento total, o conhecimento que traz a imortalidade, o conhecimento sobre o absoluto.
Diversas Upanishads trazem historinhas semelhantes, em diferentes contextos, que tem como intuito ilustrar o campo no qual o conhecimento se frutificará. O objetivo da história contada é mostrar a preparação do estudante. Mostrar a atitude de confiança no mestre e ao mesmo tempo a maturidade do estudante. Esses discípulos qualificados ajudam-nos também no nosso próprio caminho à medida que nos espelhamos neles.
Essas qualidades são enfatizadas em textos posteriores de maneira direta, como vemos na Bhagavad Gita e nos Yoga Sutras. Nas Upanishads é apresentada através de historinhas. Podemos ver implicitamente na historinha da Katha Upanishad, que Nachiketas teve vayragya, desapego, ao não aceitar o que lhe foi oferecido; teve viveka, o discernimento entre o eterno e o não eterno; teve shama (comando sobre a mente); edama (comando sobre os órgãos dos sentidos) ao manter-se firme no seu propósito, resoluto e com a mente tranquila, deixou o Deus da morte falar; ele teve noção de qual era o seu papel, dharma, enquanto filho, uparati, uma vez que foi até o Deus da morte para cumprir as palavras proferidas pelo seu pai; teve shrada, confiança no mestre, ao saber que Yama é a melhor pessoa para lhe ensinar isso; Titiksha, paciência e firmeza, ele foi resoluto ao esperar durante três dias o Deus da morte; e, finalmente,mumukshutvam, desejo pela libertação, ao manter-se resoluto no objetivo final.
Depois de contada a historinha que representa o contexto do ensinamento e as qualificações do estudante, começa o ensinamento em si, sempre da boca de um mestre ao ouvido de um discípulo que deseja escutar. Aqui o mestre é Yama que em determinado ponto da Upanishad faz uso da conhecida metáfora da carruagem para fazer o menino entender a importância do comando sobre a mente no caminho do autoconhecimento.
“Imagine o Ser como o senhor de uma carruagem realizando uma jornada. O corpo é a própria carruagem. O discernimento é  o  cocheiro. A mente, as rédeas.”
Nessa bela metáfora, a carruagem representa o corpo humano, o cocheiro da carruagem é o intelecto (buddhi), as rédeas são a nossa mente e os cavalos são os sentidos, as curvas da estrada são as curvas da própria vida e o senhor da carruagem é o Ser, que nada faz. O objetivo da vida é descobrir esse Ser. E nós devemos conduzir a nossa mente, direcionada pelo intelecto, nesse sentido.
A Upanishad, através dessa bela metáfora, aponta para a importância do Yoga dentro do caminho do autoconhecimento, nos indicando, indireta e não detalhadamente, uma Vida de Yoga. A charrete sozinha não vai para lugar algum, vai depender para onde nós comandamos a carruagem. A carruagem é um instrumento para se chegar em algum lugar. Esse instrumento deve ser conduzido e os meios com os quais nós conduzimos a nossa vida ao autoconhecimento é Yoga.
Vejamos como o Yoga aparece noutra importante Upanishad.
O Yoga na Kena Upanishad
Essa é uma pequena, mas importantíssima Upanishad. Ela pertence ao Sama Veda. Chama-se Kena porque a primeira palavra do texto é “kena” (“através de quem”, “por quem”).
A Upanishad é um diálogo entre um discípulo e o mestre. Começa também com um mantra de paz. Diferente da Upanishad anterior, na qual a história inicial se prolonga, aqui o enredo já se inicia com o ensinamento. O discípulo faz uma pergunta ao mestre. A pergunta já nos revela que o discípulo refletiu sobre o tema e que já estudou com profundidade o assunto. O assunto é o mesmo, o Ser absoluto, a real natureza do indivíduo, livre de limitação. Em resumo, a pergunta do discípulo é:
“Comandada pelo desejo de quem a mente vai [para diversos objetos]? Por quem é comandado o funcionamento do prana, que é o primeiro? Pelo desejo de quem [as pessoas] falam estas palavras? Qual o poder que impele os olhos e os ouvidos [a objetos]?”[1].
Essa não é uma pergunta qualquer. Assim sendo, não terá uma resposta trivial. A partir da pergunta, o ensinamento começa e é desdobrado no decorrer do texto. Adiante, a resposta é dada. O discípulo, qualificado, atento à resposta e desejoso por conhecimento, compreende. O mestre pergunta se ele compreendeu, ele responde que sim. O mestre então questiona a sua compreensão. Então o aluno pensa um pouco mais e responde de tal maneira que o mestre realmente reconhece que o assunto foi compreendido.
Acaba o ensinamento, e todos ficam em silêncio. Então um aluno levanta a mão e pergunta: “Ó senhor, ensine Upanishad”. O mestre responde: “A Upanishad já foi ensinada. O que nós ensinamos foi Upanishad, que tem como tema Brahman”.
Na pergunta, o mestre reconheceu que na verdade ele não estava pedindo para ensinarUpanishad, ele estava pedindo uma ajuda para entender Upanishad. Nesse contexto, essa ajuda para compreender Upanishad é Yoga. Então o mestre responde ao aluno que para o conhecimento da Upanishad, para poder adquirir esse ensinamento é preciso uma upaya, um apoio. São vários os apoios, dependendo do discípulo, mas aqui, no contexto da Upanishad, o sugerido é:
Tapas – disciplina do corpo, dos órgãos, da mente. Capacidade de ter um comando sobre a própria mente, para ajudar a desenvolver dama e não se deixar ser levado pelas fantasias da mente.
Dama – a capacidade de ter um comando sobre os órgãos de ação, de ter uma calma suficiente para não agir por impulso.
Karma – cumprir com os deveres, fazer o que deve ser feito, da melhor maneira, de acordo com os valores.
A Upanishad nos sugere que essas três coisas são fundamentais ao estudo dos Vedas e do Yoga. O próprio estudo traz uma disciplina da mente. Ao mesmo tempo, outrasUpanishads indicam que o coração da disciplina deve ser a Verdade. O exercício da verdade, da sinceridade, no falar, em todas as áreas da vida.
Em síntese, podemos dizer que o que vai nos ajudar e o que vai nos dar o apoio na Vida de Yoga são os valores, que é o corpo do autoconhecimento. Os pés, a base, são os estudos dos Vedas. O coração é a verdade. Com esse compromisso, o conhecimento vai desabrochar em nós.
A pessoa que compreende o conhecimento da Upanishad e elimina papam da sua vida (obstáculos), descobre e permanece na plenitude, que é Si mesmo. E tudo aquilo que serve de apoio para a compreensão desse conhecimento de acordo com as Upanishads, repetimos, é Yoga.
O Yoga na Bhagavad Gita
A Gita faz parte do grande épico Mahabharata. O Mahabharata é uma longa epopéia e dentro dela está contido o dialogo entre Krshna e Arjuna. A Bhagavad Gita, dentro da tradição védica, é vista como um Yoga Shastra e Brahma Vidya, fala sobre a preparação da mente e ao mesmo tempo fala sobre o Ser eterno, sobre a real natureza do indivíduo. Na Bhagavad Gita o estudo de Vedanta vem junto com a prática de Yoga. Os dois pertencem à tradição dos Vedas e são, podemos dizer, inseparáveis.
A Bhagavad Gita é o principal texto de Vedanta, pois é o mais completo. Na Gita todos os assuntos são abordados. Como dissemos, os textos fundamentais de Vedanta são asUpanishads, porém é na Gita que encontramos todos os assuntos abordados no ensinamento de Vedanta, incluindo o assunto principal das Upanishads, o conhecimento de Brahman.
A Gita tem 18 capítulos e 700 versos. Ela pode ser dividida em três partes de seis capítulos. Os seis primeiros falam essencialmente sobre o indivíduo, os seis seguintes sobre o Todo e os seis últimos sobre a relação entre o indivíduo e o Todo.
O primeiro capítulo é chamado de “a tristeza de Arjuna”. A primeira coisa que se estabelece é o estado de espírito de Arjuna, para ele fazer a mudança que é necessária no caminho do autoconhecimento, o desejo de pedir por conhecimento. Para isso, o primeiro capítulo apresenta-nos a tristeza e o sofrimento de Arjuna frente a uma situação muito delicada que não era o que ele desejava de maneira alguma, ter que guerrear contra seus próprios parentes. Naquele momento, Arjuna se deu conta de que a guerra era um fato, porque antes ele tinha apenas a idéia sobre a guerra. Toda a história do que antecede a guerra é contada no Mahabharata. E é aqui, no início da Gita que o grande guerreiro subitamente pára e percebe tudo o que está à sua frente e o que é preciso fazer, mas falta-lhe coragem.
Então ele tenta convencer Krshna de que a melhor coisa a fazer é desistir da guerra. Nós também fazemos isso quando estamos em uma situação que envolve uma difícil decisão. Tentamos convencer a outra pessoa de que o que achamos ser melhor fazer é o mais adequado, porque apoiado na opinião daquela pessoa dizemos: “fulano também pensa assim, ele me apoiou completamente e eu me sinto mais seguro para fazer a ação”.
Note que a Gita começa a partir de um conflito humano. Um conflito sobre o que é adequado fazer, sobre a ação. E ao mesmo tempo um conflito entre perdas. De qualquer maneira que Arjuna aja, a perda vai ser muito grande. Às vezes, na vida, estamos anestesiados e não nos perguntamos qual é o sentido da vida e o objetivo final dessa vida. Seguimos apenas em busca de segurança e conforto. Porém, quando expostos a alguma situação limítrofe, na qual sofremos ou estamos prestes a sofrer uma grande perda, começamos a nos perguntar sobre essas questões. E é assim que começa a Gita,muito diferente das Upanishads, que começam já com questionamentos profundos e nada há de sofrimento ou de conflito em relação a si mesmo, à ação ou à auto-imagem.
É como se a Gita falasse mais intimamente para nós hoje, para os conflitos que vivemos no nosso dia-a-dia. E com isso nos propõe um processo, um caminho de preparação para a assimilação desse conhecimento, uma Vida de Yoga muita clara é apresentada naGita por Krshna em compaixão ao sofrimento que Arjuna está passando. Para quem sofre, primeiro, é importante aliviar o sofrimento, acalmar a mente, para depois estar apto a compreender o ensinamento.
Apesar de ser uma pessoa altamente qualificada, um grande guerreiro que em suas histórias sempre mostrou determinação e foco mental, Arjuna tenta de tudo no capítulo I para convencer Krshna de que aquela guerra não seria boa, que iria destruir as famílias, que o dharma iria declinar, que iria matar os parentes em nome de riqueza e reinados. A confusão foi tamanha que ele esqueceu a verdadeira razão da guerra, as emoções tomaram conta do seu ser. Arjuna viu que quaisquer das decisões que tomasse envolveriam perdas, e ele ficou na dúvida do que seria menos sofrido fazer naquele momento.
Ele diz então que o melhor seria deixar os adversários ganharem, tentando aparentar uma atitude de humildade e nobreza. E Krshna responde, “não pense que essa atitude é uma atitude nobre, você está fugindo da sua obrigação”. Não ache que todos vão pensar que você é uma pessoa nobre e cheia de compaixão que deixou eles vencerem e ficar com tudo. Todos vão pensar que você ficou com medo e abandonou o campo de batalha e o dharma.
E o primeiro capítulo fecha com a fala:
“Arjuna, cuja mente está tomada de tristeza, falando desta forma e abandonando o arco e as flechas, sentou-se na carruagem, no campo de batalha”.
Assim, ao longo da Gita. Krshna ajuda Arjuna a acalmar a sua mente, a olhar para si mesmo e a reconstruir a imagem que ele tem de si mesmo. E no processo, Krshna fala sobre o valor que os valores têm na Vida de Yoga, como condição sine qua non para se ter uma mente tranquila; fala sobre Karma Yoga; sobre o controle sobre os órgãos dos sentidos, dama, e o controle sobre a mente, shama; e fala sobre a importância deviveka, o discernimento e vairagya, desapego, como ferramentas essenciais no caminho do autoconhecimento, na descoberta de Si mesmo.
Ou seja, essencialmente o que é ensinado na Gita é o que está contido nas Upanishads, porém, no contexto da Gita, pela necessidade do discípulo, fez-se importante falar com mais cuidado sobre o Yoga e toda uma Vida de Yoga, todo esse apoio diário para se compreender a frase essencial, “Eu sou o Todo”, eu sou a plenitude que busco fora de mim.
O Yoga nos Yoga Sutras
Ao estudar os Yoga Sutras logo vemos o estilo sistemático do autor, que se esclarece ao sabermos quais foram os outros dois textos atribuídos a ele. É atribuído também a Patañjali, o autor do Yoga Sutra, dois outros textos, um sobre medicina, outro sobre gramática.
Os Yoga Sutras tem um formato diferente dos citados anteriormente e está escrito em forma de sutra, frases curtas e condensadas que se encadeiam umas nas outras. E nesse formato, diferente dos textos acima citados, não cabem historinhas para ilustrar situações, vai-se direto ao assunto sobre o qual o texto se propõe a abordar. E aqui o tema é o Yoga.
Para que compreendamos o significado dos sutras em toda a sua amplitude, é necessário interpretarmos um sutra em relação ao outro e remetermos ao contexto no qual o texto está inserido. O contexto é a cultura védica, ou seja, a cultura dos Vedas. Patanjali, em seu texto, não fala nada novo em relação ao autoconhecimento ou ao Yoga. Pelo contrário, ele retoma o tema contido nas Upanishads, que é o conhecimento sobre a nossa real natureza, livre de qualquer limitação.
O que ele faz nesse preciso e cuidadoso texto é explicar com mais cuidado e compaixão os caminhos da mente humana. Logo no segundo sutra o autor define o que é Yoga. E nessa definição entendemos Yoga como o meio de preparação para o autoconhecimento e ao mesmo tempo o estado que se alcança com a compreensão do conhecimento sobre Si mesmo. Na sua definição yogashchittavrttinirodhah, “Yoga é a desidentificação com os movimentos da mente”, vemos o Yoga como o estado final. No decorrer do texto ele vai apresentar o caminho do Yoga, o que nos tira do estado, os obstáculos a se ter uma mente tranquila para a compreensão final, e, posteriormente, uma miríade de dicas para a permanência no estado de paz.
Patanjãli, no Yoga Sutra, não fala muito sobre a natureza do sujeito, como se fala nos textos citados anteriormente. O foco é no método para alcançar isso. Ele mostra aquilo que pode nos ajudar a permanecer nesse estado. Ele não fala com tantos detalhes sobre qual é a verdadeira natureza do Sujeito, isto já está bem claro nas Upanishads e na Gita.Patanjãli foca na preparação e na disciplina, para que, assim, possamos entender o que as Upanishads querem dizer e possamos chegar a essa compreensão. Para isso ele propõe, entre outras coisas, o famoso caminho de oito partes:
1) Yamas, em relação à ética, é o que não devemos fazer para que possamos nos manter em paz em relação a nós mesmos e aos outros.
2) Niyamas é o que devemos fazer para mantermos acesa a chama da busca pelo autoconhecimento.
3) Asanas é a busca por estar confortável dentro do corpo, a partir do reconhecimento de que o corpo busca a sua estabilidade no mundo, e eu busco a minha estabilidade momentaneamente dentro desse corpo. É ver o corpo como ferramenta e objeto de aprendizado e não como o sujeito, como Eu.
4) Pranayama é o controle e expansão do prana como forma de ter um comando sobre a mente.
5) Pratyahara é o controle do alimento, é o comando sobre os órgãos dos sentidos e a consciência do que eu dou de alimento à mente. A partir desse comando posso ter um melhor comando sobre a minha própria mente, shama.
6) Dharana, 7) dhyana, 8 ) samadhi, são as práticas internas que conduzem à libertação. É a condução voluntária da mente a um determinado assunto e a capacidade de permanecer nele por determinado período. E o assunto proposto para essa permanência é o conhecimento sobre o Sujeito, sobre o Eu livre de limitação. Esse conhecimento conduz o indivíduo a não identificação em relação à própria mente e conduz ao estado de contemplação. A mente contemplativa, diz Patanjali, é Yoga, assim como o apoio para se chegar a essa mente contemplativa é Yoga. Yoga é aqui, portanto, o meio e o fim.
O reconhecimento da unidade do Yoga e o reconhecimento da unidade da busca humana
O objetivo de toda essa tradição é revelar ao indivíduo que ele já é aquilo que busca, plenitude, liberdade. Se já sou o que estou buscando, a minha ansiedade e o meu sofrimento se tornam uma ignorância. É como se eu desejasse ardentemente ir para a minha casa já estando dentro de casa. Nada preciso fazer para ir para a minha casa, se já estou em casa. O que preciso é reconhecer que estou em casa. Nesse sentido osVedas revelam-nos esse fato desconhecido por nós, servindo-nos de espelho. Quando olhamos para um espelho, o objetivo é olhar para nós mesmos, não para o espelho. Nós olhamos para nós mesmos no espelho porque os olhos não têm a capacidade de revelar o nosso próprio rosto. Da mesma maneira, quando olhamos para as Upanishads, não estamos em busca das Upanishads em si, estamos em busca de nós mesmos. Quando olhamos para as Upanishads nos vemos, porque sozinhos não conseguimos nos enxergar. As Upanishads nos refletem e ali nos reconhecemos. O objetivo final dasUpanishads, como textos de Yoga e de Vedanta, é revelar o Sujeito a esse indivíduo que se acha limitado. E o objetivo de todos os textos relacionados a esse assunto é o mesmo. Só que a ênfase dada ao caminho, à Vida de Yoga como apoio a esse reconhecimento varia de época para época de acordo com as necessidades dos buscadores.
Esse conhecimento contido nas Upanishads, que vem de tempos remotos, permanece vivo até os dias atuais. Ele chega até nós através de diferentes textos posteriores àsUpanishads e alguns muito recentes, mas que as têm como referência. Para não nos perdermos dentro de conceitos e classificações no tempo e no espaço, é importante darmos o crédito ao conhecimento das Upanishads, seja através do estudo das própriasUpanishads ou de outros textos mais recentes à luz das Upanishads. Para reconhecermos a unidade do Yoga é importante, em algum momento, olharmos esses textos não apenas com os olhos de análise do texto – como se somente analisássemos o espelho esquecendo que o espelho nos reflete, e por nos preocuparmos em ficar analisando o espelho, esquecemos de nos ver ali refletidos – mas com a abertura para realmente vermos se há sentido, não para nós, mas em nós, no que ali é dito. Ao nos reconhecermos nesses textos, certamente reconhecemos a unidade da tradição védica e do Yoga como um meio de conhecimento que tem como objetivo responder com clareza as perguntas humanas fundamentais sobre a busca da felicidade, sobre o indivíduo, sobre o Todo e sobre a unidade entre o indivíduo e o Todo.
Tales Nunes
* Artigo originalmente publicado na edição 29 dos Cadernos de Yoga

[1] Tradução de Gloria Arieira da Kena Upanishad, publicada na edição 06 dos Cadernos de Yoga.


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